Aldo atingiu finalmente o seu limite. Já era para lá de agosto e isto significava que já se passavam mais de dois meses que ele se via separado de Márcia. Dois longos meses e tudo o que havia para nos mostrar era nada mais, nada menos que três cartas já com orelhas e duas longas e custosas contas telefônicas a serem ainda pagas.
A verdade era que após o fim da escola ela voltara a sua cidade, enquanto ele permanecera por lá, nesta cidade onde estudara, conhecera e se apaixonara por ela, sim eles continuariam juntos, apesar de toda a distância, o sentimento que sentiam mutuamente era deveras rígido para se acabar apenas por uns poucos quilômetros. Ela, decididamente, tentou manter uma certa fidelidade, saia às vezes confesso, mas apenas por diversão, mantivera-se fiel por todo tempo.
Mas ao tardar das horas Aldo se preocupava, pelas noites não conseguia dormir, e quando conseguia, tinha sonhos horríveis! Ele mantinha-se deitado por horas e horas, virando-se e debatendo-se debaixo de seus edredons que se pareciam mais como cápsulas protetoras, lágrimas escorriam de seus olhos quando imaginava o semblante de Márcia e todos os seus votos de fidelidade serem derrotados por um pouco de álcool e pela calma e suave voz de um neandertal, finalmente sucumbindo as definitivas carícias sexuais do completo esquecimento. Era muito mais do que um ser humano qualquer poderia suportar.
As fantasias sobre uma infidelidade de Márcia o tomaram por completo. Sentimentos de abandono sexual circulavam-no dia a dia por todos os seus pensamentos, com mínimas exceções.
E de fato, nunca entenderiam de verdade como ela, Márcia, realmente era. E já ele, Aldo, por si só entendia e a amava assim como seu primeiro e único amor, não obstante ela o era. Intuitivamente ele tocara todos os núcleos e cavidades de seu psíquico. Ele a fazia sorrir e ela precisava dele, mas Aldo não estava lá para ela.
A idéia geral de seu presente veio a ele numa quinta antes dos feriados festivos começarem a dar as caras, máscaras e fantasias. Ele fizera todos os seus bicos usuais por alguma grana a mais e logo correra para checar se qualquer palavra era possível ser lida em alguma mensagem virtual (o meio mais barato de se comunicar) que fora enviada por Márcia à sua sempre vazia caixa de mensagens, ele se desvencilhara de todas as suas amizades quando seu namoro com ela ficou mais sério, e após sua separação, seu único e melhor amigo era seu computador e não obstante a rede virtual. Não havia nada em sua caixa além de spans e uma correspondência de um curso preparatório para vestibulares, pelo menos eles se importavam em escrever oferecendo uma bolsa de descontos, a única coisa que Aldo queria além de estar com Márcia era prestar vestibular já que há pouco tempo retirara sua carteira de motorista.
Por correspondência poderia enviar qualquer objeto físico a qualquer lugar do país ou do mundo, concluía Aldo, diferentemente dos seus correios eletrônicos. Até que lhe veio a cabeça, já que ele não havia como ir até a cidade de sua amada pelas maneiras mais convencionais, leia-se também, convenientes, por que não enviar a si mesmo por correio a ela? Era extremamente simples! Ele postaria-se pelos serviços postais mais rápidos, aqueles que em uma noite você poderia ir do Haiti até a China. O dia seguinte Aldo foi apressadamente até uma papelaria comprar todos os itens necessários para sua viagem instantânea. Ele comprou: fitas adesivas extremamente aderentes, grandes e rígidos grampos, um grampeador de alta potência (seria necessário para se grampear lá dentro de uma forma que nem a pior das pancadas o tirasse de lá) e uma caixa de papelão das mais rígidas feita exatamente para uma pessoa de sua estatura e porte físico, isso tudo foi o que ele julgou ser o necessário para uma viagem confortável. Bastavam uns buraquinhos para se respirar, água e umas barrinhas de cereal e pronto, Aldo já poderia viajar tão bem quanto um turista!
Sexta-feira a tarde Aldo estava pronto. Ele se empacotara inteiramente e o serviço postal havia combinado com ele de buscar uma caixa em sua casa às quinze horas, a caixa seria marcada com a palavra "frágil". Sentado de cócoras dentro, sobre plástico bolha, que ele inteligentemente lembrara de revestir toda a parte interna da caixa, fantasiava a expressão alegre de Márcia ao abrir a porta e assinar o recebimento para finalmente abrir e ver o seu amado Aldo ali pessoalmente.
Ela provavelmente o beijaria e depois dum tempo até poderiam ver um filme juntos. Ai se ele houvesse pensado nisso antes... Finalmente ele ouviu um veículo parar sobre sua porta, passos se aproximarem e algumas mãos erguerem seu pacote e o jogarem no canto de um caminhão para finalmente ser entregue à destinatária final.
Márcia a pouco escovara seus longos cabelos. Havia sido um fim de semana muito difícil. Ela devia se lembrar de não beber como aquilo em festas. Guilherme, seu mais novo caso, havia sido bacana enquanto a este fato de não beber. Após a noite toda ter terminado ele disse que ainda a respeitava e apesar de tudo, eram certamente as leis da natureza e mesmo assim, não é que ele não a amava, ele sim sentia muito afeto por ela, e afinal, eles já eram adultos crescidos. Ah, o que Guilherme poderia ensinar a Aldo...
Mas isso já se parecia coisa de anos e anos atrás... Aldo, nossa, coisa de séculos... Ela mal pensava nele e quando pensava era como se tivesse um problema mal resolvido.
Sheila, sua melhor, melhor, melhor amiga andou pela porta da cozinha dizendo, sem ao menos desejar bom dia - Deus está absolutamente deprê lá fora - Ah eu sei o que você esta passando, eu estou me sentindo toda nojenta - Márcia terminava de colocar sua jaqueta enquanto Sheila passava seus dedos sobre um pouco de sal que descansava sobre a mesa da cozinha e os lambia expressivamente -Eu deveria tomar aquelas pílulas de sal, mas elas me fazem sentir enjôo - ela contraia seu nariz enquanto Márcia se alongava abaixo da linha dos joelhos como aprendera em seus livros de Ioga - Nossa nem me fale - respondia enquanto Sheila levantava e ia até a pia da cozinha pegar uma caixa cheia de pílulas azuis e vermelhas de vitaminas - Quer uma? Elas te farão se sentir melhor - tentou tocar seus joelhos assim como Márcia - Eu acho que nunca mais na vida encostarei numa vodka de novo.
Márcia desistiu dos alongamentos e sentou-se, agora se encontrava mais próxima da mesa onde ficava o telefone - Talvez Guilherme ligará - disse mirando os olhos de Sheila que agora tentava arrancar suas cutículas - Depois da noite passado, eu estava pensando, talvez você poderia levar as coisas um pouco mais a sério com ele - Eu sei o que você quer dizer. Meu Deus, ele passava as mãos em todos os lugares do meu corpo - Ela levantava os braços para o alto como se tentasse defender-se de algo - O fato é que, depois de um tempo, você se cansará de lutar com ele, sabe, e mesmo assim eu não fiz nada de importante sexta e sábado a noite e só dele nos chamar para sair... então eu meio que devo uma a ele, você sabe muito bem - Márcia começou a se coçar de nervoso enquanto Sheila dava gargalhadas com as mãos na boca - Eu te digo - completava Márcia - Eu me senti assim, depois de um tempo - ela decidiu ir adiante depois de bufar forte - Eu até que queria mesmo - Agora Sheila dava gargalhadas ainda mais altas.
E foi nesta hora que o carteiro tocou a campainha de uma casa colorida com muros texturizados. Márcia logo correra para atender a porta, ao abrir ele a ajudou carregar a caixa para dentro. Ele teve a sua pequena notinha de papel amassado assinada e se despediu com um pequeno e sincero sorriso - O que você acha que é? - Perguntou Sheila. Márcia permanecia com os braços cruzados atrás das costas vidando o desenho duma caixa marrom sentada no meio da sala de estar - Eu não faço a menor idéia.
Dentro da caixa, Aldo se remexia de felicidade ao escutar as vozes abafadas. Sheila meteu as unhas impulsivamente sobre as fitas adesiva que cobriam o centro do desenho - Por que você não olha para o endereço do remetente e vê de quem é? - Aldo sentia seu coração batendo forte sobre o peito, ele até podia sentir os passos vibrantes das duas, seria em pouco tempo.
Márcia andou até o desenho e leu a etiqueta rabiscada a tinta - Ai meu Deus é do Aldo - Aquele imbecil, completou Sheila - Aldo tremia de ansiedade - Você pode abrir mesmo assim - disse Sheila concluindo seu comentário anterior. As duas tentaram, sem sucesso, puxar todos os grampos que lacravam a dura caixa - Ai merda - disse Márcia, resmungando - Ele só pode ter grampeado a caixa com ela fechada - Elas puxaram os grampos novamente - Meu Deus você precisa de uma furadeira para abrir isto! - Elas puxaram novamente - Não dá para descansar um pouco? - As duas permaneceram imóveis respirando fortemente - Por que você não pega uma tesoura? - Disse Sheila. Márcia correu até a cozinha e a única coisa que conseguiu achar foi uma tesourinha de cozinha, até que se lembrou que seu pai tinha uma caixa de ferramentas no quintal, correu para fora e quando voltou ela tinha um canivete de metal enorme e afiado sobre as mãos - Isto é o melhor que eu consegui - Ela estava totalmente cansada e sem nenhum ar sobrando em seus pulmões - T-oma a-aqui, vo-cêe que abre. E-eu vou morr-er... - E se jogou sobre um estofado fofinho que tinha em sua sala respirando profundamente. Sheila tentou fazer um furo entre as resistentes fitas adesivas e alguns grampos, porém a lâmina era muito grande e não houve espaço o suficiente para puxá-los - Mas que droga isso! - ela disse se sentindo totalmente desesperada, depois sorriu - Já sei, eu tive um idéia - Disse Sheila com um dedo sobre sua cabeça - O quê? - Perguntou Márcia - Só olha - Respondeu Sheila entusiasmada.
Dentro da caixa Aldo se sentia transfigurado de felicidade, que mal podia respirar, sentia sua pele sendo cortada de excitação, sentia até seu coração batendo pela garganta - Só mais um pouquinho - pensava consigo. Aldo também tentava prever a felicidade que sentiriam os dois ao poder se verem juntos mais uma vez, e então as coisas ficavam ainda mais tensas, previa também o sorriso de Márcia lembrando, inclusive, todo percurso que fizera desde sua partida até chegar na cidade dela, por fim também pressentia que esta história seria ainda muito lembrada por todos os seus amigos...
Sheila parou em pé e um tanto quanto quieta, andou envolta da caixa até o outro lado, depois ajoelhou-se de frente a ela, apertou o canivete com as duas mãos o mais forte possível, inspirou todo o ar possível de ser inspirado profundamente e introduziu de um só vez a longa lâmina pelo meio da caixa, pela fita adesiva, pelo papelão, pelo plástico bolha e (baque) certamente pelo centro da cabeça de Aldo, que delicadamente espirrou, causando o aparecimento de pequenos e rítmicos arcos avermelhados a pulsar gentilmente nessa ensolarada manhã.
"Delicadamente espirrou, causando o aparecimento de pequenos e rítmicos arcos avermelhados a pulsar gentilmente nessa ensolarada manhã".
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